terça-feira, 31 de julho de 2012


Visita inesperada.
Tarde fria, a noite já se aproxima, um ventinho anuncia a necessidade de botar mais cobertores sobre a cama. Estavam na sacada da minha casa, quando vi passando bem junto a cerca, dois vultos, pequenos, mal de movimentavam. Olhavam de olhos arregalados para o cachorro, o Kiko, que latia sem parar. Olhei, e arrisquei um Oi? Responderam ao mesmo tempo em que me chamavam ali fora, no jardim. A princípio não entendi, falavam muito baixinho, quase sussurrando, pedi que falassem mais alto, então uma delas a menor falou: Não posso, falar mais alto é segredo. Pedi então que esperassem que eu ia descer para falar com elas. Mas, minha esposa que acompanhava o diálogo da janela, saiu primeiro e foi ao encontro delas. 

Quando cheguei bem próximo perguntei o que havia acontecido, responderam: Fugimos da Casa de Passagem. Como assim, fugiram, porque fizeram isto? Eles, os guris maiores estavam mexendo com a gente, então pulamos a cerca e fugimos. Mas, e agora o que vocês vão fazer? Perguntei. Nós só queremos um lugar para passar a noite, amanhã voltaremos para a casa de passagem. Pensei um instante e decidi, pedi a minha esposa que abrisse o portão e que elas entrassem, pois deveriam estar com fome. Na verdade eu queria ganhar tempo e confiança para buscar a solução do problema. Elas entraram, foram para a cozinha com minha esposa, pude notar então que estavam com fardamento da escola, mochilas, e com calçados nos pés. Não tinha aparência de fujonas, eram bem bonitinhas, mas pouco conversadoras. Ai, então, fazendo um lanche, começaram a fazer algumas perguntinhas básicas. 

Ganhamos a confiança delas, a maior, Bianca com onze anos e a menor Luana com nove anos. Enquanto se distraiam conversando com a Margareth, eu fui até o escritório, e fiz contato com o Conselho Tutelar, o conselheiro Kleber, atencioso, pediu alguns minutos e, em pouco tempo chegou. Mas a estas alturas nós já havíamos conseguido ficar sabendo o porquê de duas meninas, aparentemente sadias,sem problemas se encontrarem num casa de passagem. E as famílias? Ambas as tinham,mas Bianca, a de onze anos não podia viver com a irmã, única parente viva, pois já havia sido abusada pelo companheiro da irmã. Então fora retirada e enviada para o abrigo. Já Luana, com nove anos morava em Arroio do Sal com a mãe e nove irmãos, sendo que a mãe já estava esperando o décimo filho. 

Então, não havia mais dinheiro, muito menos lugar para ela em casa, foi trazida para a casa da avó em Sapucaia do Sul, que também não a quis e despachou como mercadoria descartável para a casa de passagem. Daí então, ali, a frente daquelas indefesas crianças comecei a reviver tantos casos de crianças desparecidas, e agradeci a DEUS ela terem batido justamente no meu portão. Então fiz ver a elas que minha filha , hoje com 24 anos não vai para a parada de ônibus, sem que a mãe ou o irmão a acompanhe, pelos perigos, isto que é adulta. Imagine duas meninas caírem nas mãos de vagabundos, que andam aos montes, obrigarem-nas a ingerir drogas, bebidas alcoólicas ou qualquer outra porcaria. Luana me ouvia com os olhos marejados de lágrimas, perguntei se gostaria de ser adotada, disse que não queria poder viver com a mãe. Já Bianca pareceu-me disposta a aceitar outro lar. 

Mas, também, com onze anos, já abusada, jogada num canto sem carinho de família, sem um pai, uma mãe, alguém em quem se apoiar. O conselheiro agradeceu, por termos ajudado, naquela tarde, havia acontecido uma debandada da Casa de Passagem e eles estavam loucos procurando pelas duas meninas. Ao saírem, me abraçaram e deram um beijo no rosto agradecendo. Senti uma tristeza tão grande, uma pena de não poder fazer nada mais do que oferecer um lanche, a algumas palavras. São seres humanos que não tem horizontes definidos, que expectativas podem ter estas crianças? Saem, do abrigo, vão a escola, voltam para o abrigo, e depois? Depois a mesma rotina. 

Despedi-me delas pedindo que todas as vezes que quisessem fugir, que não teria problema nenhum, corressem para a minha casa, aqui eu e minha mulher as acolheríamos, conversaríamos e novamente encaminharíamos ao seu lar, ou melhor, ao seu abrigo.

Obs. Os nomes são fictícios, para preservar a identidade das meninas, pois os fatos são0 reais.

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